Conto

Ultraje

19:35Claudia M.

Ultraje. Ultraje foi a palavra mais elegante que consegui pensar para expressar a angústia que eu sentia, sentada naquela calçada muito provavelmente imunda. Nem sei dizer por que ainda estava ali, visto que ele já tinha ido embora fazia horas. Se não dias, quem sabe? De qualquer forma, não me parecia que o tempo passava. Podia claramente ver uma multidão dançando, pulando, se embebedando e fingindo que se amavam por uma noite, ao ritmo de alguma coisa animada e barulhenta. Parei de tentar prestar atenção depois da sexta pisada no pé, de alguém com um sorriso de bobo estampado na cara. Sequer olhavam pra checar se o pé passava bem. Ultrajante. 

Aliás, parte é culpa minha por gostar de ver a alegria passageira das pessoas. Admirava a capacidade de esquecer todas as merdas que a vida lhes servia como prato principal. Esqueciam-se da roupa que tinham acabado de rasgar, o quanto gastaram naquele botequim não tão camarada da esquina, a irmã que morreu um dia antes, e até do marido que a cumprimentava com um soco na cara.
Enquanto isso, eu ali, sentada numa calçada, sem conseguir esquecer a ida de alguém, esperando que o tempo parasse ou que eu pudesse ir à lua. Ultrajante.

Naquela hora da noite, que logo seria dia, toda e qualquer pessoa que passava por mim recebia um ataque direto por parte dos meus olhos. Nada contra ninguém, mas eu esperava outro alguém, que esperei a noite toda e esperaria mais. Tinha percebido que somente eu que estava sem companhia. Coisa que há algumas horas não era bem uma preocupação. Há muito tempo, 
estaria sentada com os colegas de trabalho, sendo melhores amigos até irem embora. Há algum tempo, a tal pessoa esperada estaria do me lado se esforçando pra fazer todos os trocadilhos possíveis. Há pouquíssimo tempo, teria a ultima cerveja que podia pagar. Ultrajante.


Poderia ter ido embora, mas o pensamento de ir pra casa era pior. Era sempre pior. Também não queria ficar num lugar que a partir daquele dia se tornaria motivo de tristeza. Queria estar em lugar nenhum. Mas o que se faz quando o seu lugar nenhum já foi embora? Me disseram que o Everaldo, do Bar do Everaldo, sabe a resposta. Possível que soubesse. Ouvi dizer que ele tem a resposta pra tudo. Quem ia falar com ele saía de lá feliz, rindo como se tivesse ganhado na tele sena. Às vezes saiam de lá chorando, não sabe-se a razão (acho que alguns não gostam das respostas), tudo que se sabia era que pra esses não tinha solução. Ultrajante.

Chegou uma hora em que a música parou e a rua foi ficando cada vez maior com a ausência do fuzuê. Alguns casais ainda andavam de mãos dadas, rindo por nada. Outros, cambaleando e tropeçando nas próprias sombras, gritavam o número de garotas com quem tinham ficado, mas ninguém passava sozinho. Então pensei no por que da música ter parado. Já era dia e as pessoas tinham que parar de fingir que esqueceram. O que mais me indignou foi ter parado também. Tinha esquecido que era pra continuar esquecido. Ultrajante.

Foi naquele friozinho de começo de manhã que não me esqueci de ter mandado meu lugar nenhum embora. Dito pra não voltar. Não esqueci que o que eu tinha, na verdade,era vontade de gritar, desenhar e o que mais fosse, que ele deveria se sentir lisonjeado, porque o amava. E amava de um jeito muito bonito, se quer saber. Mas, ultrajante mesmo, foi desejo de jogar certo órgão pulsante fora, só por ter admitido pra mim e não pra ele, e a vontade, que perdura, de nunca mais usar a palavra “amor” na vida.

You Might Also Like

0 comentários

Popular Posts

Flickr Images

Formulário de contato